Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, infectologista Pedro Folegatti, à frente de pesquisa 'extremamente promissora' anunciada na segunda-feira, diz que recusar vacina não é decisão individual e custa vidas.
Mestre em saúde pública, o médico infectologista Pedro Folegatti já trabalhou pesquisando doenças tropicais, infecciosas e parasitárias no Brasil, na Tanzânia, em Uganda e no Reino Unido, antes de se tornar um dos cientistas do instituto que leva o nome do inventor da vacinação, Edward Jenner, na Universidade de Oxford.
O ponto alto da carreira, no entanto, começou em fevereiro deste ano, quando Folegatti se
tornou um dos responsáveis pelos milhares de testes que vem sendo
realizados no desenvolvimento de uma das vacinas mais promissoras contra
o novo coronavírus.
"Temos trabalhado dia e noite, fim de semana, feriado, desde o final de
fevereiro, para fazer esses ensaios clínicos acontecerem", conta o
médico de 34 anos, que tem dormido em média 4 horas por noite, em
entrevista por telefone à BBC News Brasil.
O empreendimento foi notícia no mundo inteiro na segunda-feira (20),
quando um artigo co-assinado pelo brasileiro sobre testes com 1.077
voluntários nas fases 1 e 2 da vacina apontou que ela é segura e tem
capacidade de gerar uma resposta positiva no sistema imunológico.
A próxima etapa envolve voluntários no mundo inteiro — incluindo 5 mil brasileiros. Mas a missão ainda está começando.
"O que os resultados preliminares mostram é que, sim, a vacina é segura
ao não induzir efeitos colaterais graves em nenhum dos 1077
participantes que foram recrutados (...). E sabemos que, sim, existem
diversos anticorpos sendo induzidos por uma ou duas doses da vacina. A
qualidade desses anticorpos é boa, no sentido de que ele não só existe
em quantidade suficiente, mas também é capaz de neutralizar o vírus. E
induz também outro pedaço da resposta imune, que chamamos de imunidade
celular por linfócito T", diz.
"Agora, o passo que precisa ser dado é saber se essa resposta imune que
é induzida pela vacina é suficiente para garantir proteção contra o
coronavírus."
À reportagem, o único brasileiro na linha de frente da produção da
vacina no Reino Unido detalhou a velocidade inédita das pesquisas — "O
processo costuma acontecer em torno de muitos e muitos e muitos meses. A
gente conseguir recrutar 1077 voluntários em um período de um mês é sem
dúvida uma coisa sem precedentes" — e faz alertas sobre a
responsabilidade compartilhada por meio de um "pacto social" em meio à
pandemia.
"O fato de uma pessoa escolher não se vacinar ou não usar uma máscara
não é uma escolha individual e repercute de forma bastante significativa
na sociedade como um todo. Essas coisas se traduzem em aumento de
custos no sistema de saúde e fundamentalmente em milhares de vidas
perdidas", diz.
"É importante que as pessoas tenham ciência de que não é só uma
gripezinha, não é só um resfriado, existem milhares de vidas perdidas
por conta dessa doença e as pessoas precisam fazer o papel delas: ficar
em casa, usar máscara em ambientes públicos, lembrar de lavar as mãos
várias vezes ao dia. Essas medidas são bastante importantes como
estratégia de contenção do vírus na ausência de um tratamento ou vacina
eficaz", diz.
Ele resume sua mensagem: "Precisamos basear nossas ações no que a evidência científica diz que funciona ou não".
Leia os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - Antes de tudo, parabéns pelo anúncio. Imagino que a adrenalina esteja lá em cima.
Pedro Folegatti - Obrigado. Está tudo bastante caótico
na verdade. Muito, muito trabalho, mas é gratificante ver que as coisas
estão começando a acontecer e da forma que a gente esperava. É um
resultado bastante positivo.
BBC News Brasil - Qual é exatamente o papel do senhor nesta pesquisa?
Pedro Folegatti - Sou um dos clínicos responsáveis pela
condução dos ensaios clínicos e tenho uma participação bastante variada
- desde a concepção do estudo, escrever os protocolos, implementação e
seguimento dos voluntários. Meu papel principal é garantir que a gente
faça o seguimento do ponto de vista de segurança dos voluntários.
BBC News Brasil - O que é exatamente esse seguimento de segurança?
Pedro Folegatti - O que a gente fez nesses ensaios
clínicos, nessa fase em que reportamos os resultados, é recrutar
voluntários saudáveis. Eles são divididos em dois grupos: o primeiro
recebe a vacina que queremos investigar, a nossa vacina contra o
coronavírus, e o outro grupo é de controle e recebe outra vacina
qualquer, que esperamos que não tenha efeito contra o coronavírus. A
gente segue essas pessoas por um período mínimo de seis meses a um ano e
observa quaisquer efeitos adversos induzidos pelas duas vacinas.
BBC News Brasil - O nome do senhor aparece em primeiro no
relatório de resultados da pesquisa. Isso sugere liderança nesse
processo?
Pedro Folegatti - Mais ou menos. Como em qualquer
publicação científica, os primeiros autores são os responsáveis pela
maior parte do estudo, os que contribuíram de forma mais importante para
o estudo, e os últimos autores são os autores sêniores no processo — o
chefe, as pessoas que desenvolveram a vacina de fato e os imunologistas
também.
BBC News Brasil - Essa vacina está sendo produzida em uma
velocidade sem precedentes. Pode falar sobre como tem sido esse processo
em uma perspectiva mais pessoal? Imagino que o cotidiano esteja
bastante intenso e queria entender bastidores desse trabalho.
Pedro Folegatti - Sem dúvida. Na maioria das vezes, nos
estudos em fase 1 ou 2, a gente recruta uma quantidade de voluntários
significativamente menor do que recrutamos para esse ensaio clínico
específico. E esse processo costuma acontecer em torno de muitos e
muitos e muitos meses. A gente conseguir recrutar 1077 voluntários em um
período de um mês é sem dúvida uma coisa sem precedentes para um ensaio
clínico como este.
A gente começou a trabalhar a vacina desde o momento em que a sequência
do genoma do coronavírus foi divulgada pelos cientistas chineses e as
preparações para os ensaios clínicos vem acontecendo desde o final de
fevereiro. É muito papel, são várias etapas de aprovação necessárias
nesse processo: as principais são aprovação por um comitê de ética
independente e da agência regulatória.
O processo tem sido acelerado de forma bastante substancial, sim, mas
sem comprometer itens importantes com relação à segurança dos
voluntários incluídos no estudo. Temos basicamente trabalhado dia e
noite, fim de semana, feriado, desde o final de fevereiro, para fazer
esses ensaios clínicos acontecerem.
Normalmente a gente recrutaria 25 ou 50 pessoas em um estudo clínico de
fase 1, em um processo que levaria de 6 meses a 1 ano. A gente fez
muito mais do que isso: recrutamos 1077 indivíduos em um prazo de um
mês, em uma logística e infraestrutura gigantes. Existem mais de 250
pessoas envolvidas na execução desses ensaios clínicos na Universidade
de Oxford apenas, fora os outros diversos parceiros nos centros de
pesquisa que também participam do estudo.
BBC News Brasil - O senhor tem dormido quantas horas por noite?
Pedro Folegatti - Varia bastante, mas tenho dormido em média quatro (horas, desde fevereiro). (Risos)
BBC News Brasil - Ontem foi anunciado ao mundo que a vacina é
segura e gera uma resposta imunológica no organismo. O que isso
significa para quem não acompanha a literatura científica?
Pedro Folegatti - A vacina mostrou que não existe
nenhum evento adverso grave induzido pela vacina nesse espaço de tempo
curto em que temos assistido aos voluntários. Isso é importante
ressaltar: é uma limitação deste estudo. Nós começamos a recrutar esses
voluntários em abril e os dados que temos até agora mostram que não
houve nenhum efeito adverso grave com relação à vacina. Eles geralmente
costumam acontecer nos primeiros dias e semanas depois da vacina.
O que os resultados preliminares mostram é que, sim, a vacina é segura
ao não induzir efeitos colaterais graves em nenhum dos 1077
participantes que foram recrutados. E foi capaz de induzir uma resposta
do sistema imunológico, que a gente precisa entender melhor ainda como
se traduz em eficácia contra o coronavírus.
Sabemos que, sim, existem diversos anticorpos sendo induzidos por uma
ou duas doses da vacina. A qualidade desses anticorpos é boa, no sentido
de que ele não só existe em quantidade suficiente, mas também é capaz
de neutralizar o vírus. E induz também outro pedaço da resposta imune,
que chamamos de imunidade celular por linfócito T.
São duas partes diferentes do sistema imune. Agora, se isso se traduz
de fato em eficácia e proteção contra o coronavírus, isso o segmento dos
estudos e os estudos maiores de fase 3 poderão dizer.
BBC News Brasil - O anúncio gerou certa euforia, porém, como o senhor disse, ainda não há um resultado definitivo.
Pedro Folegatti - Os resultados são importantes? Sim.
São encorajadores? Sim. Agora, o passo que precisa ser dado é saber se
essa resposta imune que é induzida pela vacina é suficiente para
garantir proteção contra o coronavírus.
BBC News Brasil - Quando o senhor fala suficiente para garantir
proteção... isso significa ser suficiente para nos tornar imunes
permanentemente?
Pedro Folegatti - Essa pergunta é importante e ainda
não temos resposta para ela. Existe uma variabilidade grande no que
entendemos como proteção contra o coronavírus. Pode ser que a vacina
proteja contra infecção grave, internação hospitalar, internação por
UTI, morte, por exemplo. Pode ser que a vacina induza a uma proteção
contra os casos mais leves e assintomáticos. Num ponto ideal, a vacina
garantiria proteção também nos casos assintomáticos, as pessoas que não
têm sintoma nenhum. Isso seria um papel importante com relação à
diminuição de transmissão do coronavírus.
Mas o que interessa de fato é que as vacinas previnam morte por
coronavírus, então essas nuances de quanto a vacina vai funcionar são o
que os estudos de eficácia vão começar a nos mostrar nos próximos meses.
BBC News Brasil - Cinco mil pessoas participam desta fase de
testes no Brasil, em São Paulo, na Bahia e no Rio de Janeiro. Pode
explicar essa etapa?
Pedro Folegatti - A primeira fase do processo de
testagem é pegar o voluntário adulto, jovem e saudável e ver se a vacina
induz à resposta imunológica que esperamos dessa população. Uma vez que
estabelecemos isso, seguimos em frente e procuramos testar a vacina em
outros grupos. Nos estudos de fase 2 e 3, aqui no Reino Unido, começamos
a recrutar pessoas com mais de 56 anos, há voluntários com mais de 70
anos, algumas pessoas com comorbidades como diabetes, pressão alta,
essas doenças mais comuns na população em geral. Essa é uma pergunta
importante a ser respondida, se essa vacina funciona tão bem em pessoas
que tenham outras condições de saúde. Esses estudos vêm acontecendo logo
em seguida. E aí partimos para os estudos de fase 3, em que vacinamos
um número muito grande de pessoas.
A forma como vemos a eficácia nesta etapa é dando a vacina para grupos
diferentes e para pessoas que esperamos que naturalmente se tornem
infectadas com o vírus. Então, a gente só consegue ver eficácia se
existe transmissão local acontecendo no lugar onde os voluntários foram
vacinados. Quando os ensaios clínicos começaram, aqui no Reino Unido, a
ideia original era que, com a quantidade de casos que víamos no início
do ano, que conseguíssemos ver esse sinal de eficácia aqui no Reino
Unido. Quando os casos começaram a diminuir, começamos a procurar outros
lugares no mundo em que o processo da epidemia ainda estivesse em
ascensão de casos. Foi aí então que começamos a buscar parceiros
internacionais e o fato de eu ser brasileiro também tem um pouco a ver
com isso — em tentar conversar com as equipes aqui e tentar levar os
estudos para o Brasil. Depois de alguma insistência, o
investigador-chefe daqui então conversou com o contato que ele tinha no
Brasil para fazer essa parceria começar a funcionar.
Escolhemos o Brasil por ser infelizmente um lugar onde a quantidade de
casos talvez fosse nos dar uma resposta mais rápida com relação à
eficácia da vacina.
BBC News Brasil - Então o fato de Brasil fazer parte dessa etapa
é por conta do alto volume de casos por lá e de transmissão local.
Pedro Folegatti - Mais ou menos. Tem um pouco disso,
sim, mas existem outros lugares em que o vírus estava em ascensão e a
gente optou por não fazer por lá. Acho que tem um pouco das colaborações
entre os cientistas daqui e do Brasil e da infraestrutura de pesquisa
no Brasil, que permite que a gente faça esses ensaios clínicos em larga
escala por lá.
Então, não só porque o Brasil se encontra em situação epidemiológica
bastante desfavorável do ponto de vista da doença, mas favorável do
ponto de vista de testagem de novas vacinas e novos medicamentos, mas
também pela infraestrutura de ciência atual do país, que permite que a
gente faça essas coisas com o rigor e a qualidade necessários.
BBC News Brasil - Há um forte movimento antivacina pelo mundo.
Vê-se muitas notícias falsas, boatos, e é importante que esses mitos
sejam desfeitos. O que o senhor tem a dizer para quem acredita ou
espalha estas mensagens?
Pedro Folegatti - Esse é um problema crescente no
Brasil e no mundo inteiro. A gente vê ondas de movimentos antivacina e a
gente vê muita desinformação. É importante que as pessoas chequem as
fontes de onde obtém determinadas informações. É importante que a gente
faça as coisas baseados em evidências e no que a ciência diz.
Como pudemos observar na pandemia atual, a gente precisa, e muito, da
colaboração de todos. É importante que as pessoas se vacinem, sim, para
garantir que a maior proporção de pessoas esteja coberta pela vacina e
para que se evite mortes pelo coronavírus. E isso depende bastante das
pessoas entrarem nesse pacto social. O fato de uma pessoa escolher não
se vacinar ou não usar uma máscara não é uma escolha individual e
repercute de forma bastante significativa na sociedade como um todo.
Essas coisas se traduzem em aumento de custos no sistema de saúde e
fundamentalmente em milhares de vidas perdidas.
O que tenho a dizer é isso, que as pessoas precisam pensar um pouco
mais no coletivo e tomar determinadas decisões sobre vacinar baseadas na
informação correta. Há muita desinformação por aí com relação à
segurança de vacinas de forma geral.
BBC News Brasil - O senhor é o único médico brasileiro nessa equipe aqui em Oxford?
Pedro Folegatti - Na equipe tocando o estudo em Oxford,
sim. Existem outros pesquisadores brasileiros colaborando com outros
centros de pesquisa, mas no centro principal de Oxford, sim. Estou no
Instituto Jenner da Universidade de Oxford já há 4 anos.
BBC News Brasil - O senhor tem alguma mensagem ao público
brasileiro? Há um conflito muito grande de informações no país em
relação a proteção, a isolamento, máscaras, cloroquina... O que o senhor
recomenda aos brasileiros e qual é a melhor maneira de se evitar o
próprio contágio e proteger quem está em volta?
Pedro Folegatti - Em uma situação em que os casos no
Brasil continuam acontecendo de forma muito ascendente e em que a gente
vê quantidade significativa de mortes acontecendo país afora, na
ausência de um tratamento eficaz ou vacina eficaz, não há outra opção
que não ficar em casa. É um pouco difícil falar sobre isso estando fora
do Brasil já há algum tempo, mas é importante que as pessoas tenham
ciência de que não é só uma gripezinha, não é só um resfriado, existem
milhares de vidas perdidas por conta dessa doença e as pessoas precisam
fazer o papel delas: ficar em casa, usar máscara em ambientes públicos,
lembrar de lavar as mãos várias vezes ao dia.
Essas medidas são bastante importantes como estratégia de contenção do
vírus na ausência de um tratamento ou vacina eficaz. Não existe outra
opção que não seja aderir à recomendação dos órgãos oficiais, da
Organização Mundial da Saúde. A gente tem a responsabilidade de não
recomendar coisas que possam fazer mais mal do que bem. A mensagem é:
precisamos basear nossas ações no que a evidência científica diz que
funciona ou não.
BBC News Brasil - O senhor teve algum desafio tão grande na sua carreira quanto esse que o senhor vive agora?
Pedro Folegatti - Esse tem sido o maior desafio da
minha carreira, sem dúvida, fazer essas coisas acontecerem em um espaço
de tempo tão curto. Ter a oportunidade de me envolver com esse projeto
se dúvida sem foi a coisa mais empolgante da minha carreira até o
momento e vai ser difícil bater essa aí.
Edição: Tropical Noticias
Fonte: Terra
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